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quarta-feira, 7 de julho de 2010

(Anti) Sentimental

Morte fede. Sim, ela tem cheiro forte e desagradável. Hoje senti esse cheiro e me assustei. Logo procurei por algum sinal dela. Algum corpo, algum morto, algum outro que também estivesse sentindo esse cheiro e me comprovasse que não estava louco.

A morte sempre nos rodeia, mesmo que não estejamos prontos é preciso lembrar que ela está sempre disposta e na ativa. Assim como a vida surge a cada segundo, a morte perde-se a todo instante. Morrem pensamentos, desejos, bichos, plantas, gente jovem, gente velha, gente feia, gente bonita, gente que amamos, gente que odiamos, gente que desconhecemos, gente que idolatramos e todos aqueles que estiverem vivos.

Quantas vezes morremos na vida? Nas decepções, nas frustrações, nas perdas e em tantas situações cotidianas. Acho que todo mundo convive com a morte tanto quanto convive com a vida. Talvez poucos pensem na morte e a enxerguem num sentido mais amplo do que meramente como alguém perder a vida. Sinto ser eu quem vá trazer essa informação, mas a morte não descança nem mesmo no sétimo dia.

Me lembrei do primeiro corpo que vi. Não do primeiro morto, mas da primeira pessoa morta de uma forma brutal. Pra aumentar ainda mais a dose de crueldade se tratava de uma menina, atropelada em uma ladeira e arrastada por metros até ser esquartejada. Eu e meu irmão ficamos chocados, mas algo nos manteve de certa forma indiferentes àquilo.

Ainda hoje me lembro da cena. Do jornal que cobria o pequeno corpo ser levantado pelo vento e arrancar gritos de horror da plateia, que por um instante esqueceu da praia e dos encantos litorâneos. Após o jornal descobrir a menina e a boneca próxima a ela, eu, meu irmão e muitas dezenas deixaram o local. Talvez por termos visto mais do que esperávamos ali.

Desci a ladeira segurando na mão do meu irmão. Assustado, mas assim que voltei a praia relatei a cena para minha família e logo estava distraído entre o mar, a areia e as pessoas. Acho que minha relação com a morte já estava destinada a ser algo comum. Anos depois fui trabalhar em um jornal policial, lidando com assassinatos ainda mais brutais e cruéis do que a menina na ladeira.

Trabalhar com a morte me fez vê-la com uma carga dramática bem menor do que a grande maioria. Em alguns momentos com frieza e certa indiferença, mas o tempo retomou o espanto de antes com relação à morte. Mas não levou o cheiro forte de sangue e de corpos em decomposição que sempre queima e impregna as narinas.

Mas o preço quase sempre é caro. Lidar com a morte é tornar-se mórbido. É adquirir a frieza e a indiferença necessárias para realizar o trabalho, mas exageradas para viver a vida. Dosar essa apatia para a situação profissional e não levá-la para a pessoal não é fácil. E quando não se consegue fazer isso deixamos morrer em nós aquilo que mais nos faz vivos e humanos: os sentimentos.

Cássia Eller - Socorro

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