texto do jornalista Severino Francisco*
Calma, leitor de ressaca, pois esta crônica vai começar na academia, mas vai terminar em samba ou ao menos em chorinho. Eu tinha, em uma faculdade, dois alunos chamados Vinícius com os respectivos sobrenomes de Brasileiro e Elias. Os nomes foram inspirados no poeta Vinícius de Morais, que se dizia o branco mais preto do Brasil. Sempre confundia os sobrenomes e, para me justificar, inventei a versão de que o verdadeiro Vinícius Brasileiro era o falso, ou seja, o Vinícius Elias, pois ele gostava muito de samba, parecendo vir para a aula diretamente da Aruc ou da Acadêmicos da Asa Norte. Bastava que se fizesse qualquer menção à história do samba para que imediatamente o coração de Vinícius começasse a bater no pulmão em ritmo de pandeiro, uma cuíca lhe roncasse na barriga, um tamborim percutisse no pulso e uma chispa de curiosidade se acendesse nos seus olhos: "Vou fazer uma monografia de conclusão do curso sobre o samba e você vai ser o meu orientador", ameaçou o sambista.
No último semestre, Vinícius efetivamente me procurou. A verdade é que tive um trabalho mínimo, reduzindo-me quase à condição de um orientador-laranja, pois com sua gana pelo tema, Vinícius realizou uma verdadeira varredura em bibliotecas, livrarias e sebos. O resultado foi um belo trabalho que, contrariamente ao senso comum de que o samba seria mera alienação, revelava que as letras das canções narravam uma verdadeira história não-oficial brasileira, do ponto de vista das classes populares. Só faltava a defesa pública diante de uma banca examinadora.
Pois bem, no dia marcado, Vinícius começou a realizar sua exposição com desembaraço. Ele evocou a história do surgimento do samba no Rio de Janeiro da virada inicial do século 20, quando o prefeito Pereira Passos promoveu uma modernização da cidade. Civilizar significava desafricanizar o Rio de Janeiro. Passos expulsou do centro a população dos negros africanos recém-libertos pela Abolição e a empurrou para os morros, onde se improvisariam as favelas. Nas casas das chamadas tias baianas, as tias do candomblé, nasceria o samba, este moleque desabusado. A voz do morro, sim senhor, arte de transformar a dor em alegria, a desgraça em graça, a história oficial em crônica popular bem-humorada.
Mas, de repente, Vinícius colocou as mãos sobre o rosto e estacou por uns 20 segundos:"O que houve Vinícius, está recebendo o santo?", perguntei. "Não, ele está chorando e eu não posso ver aluno chorando porque também choro", respondeu uma das professoras da banca examinadora. Em seguida olhei para o auditório e percebi que todas as 15 colegas do Vinícius também estavam tomadas pela comoção e choravam torrencialmente. Depois de alguns minutos de catarse coletiva, Vinícius recobrou a fala, realizou sua defesa e foi aprovado. "Que vexame, um sambista chorar na frente das moças", provoquei, no dia seguinte. Todos se derramaram, sem saber por quê, intuindo secretamente que algo de grave se passara dentro de Vinícius. Mas ele conhecia o mistério:"É que quando eu estava falando, me lembrei do meu bisavô, que era escravo. A história do samba também é um pouco a minha história". Mas chega de choro, chorinho bom é o do Pixinguinha ou do nosso Clube do Choro, no Eixo Monumental.
(*publicado no caderno Cidades, do jornal Correio Braziliense, na edição de 04/02/08.)
Marisa Monte e Velha Guarda da Portela (Doca, Eunice e Surica) - Ensaboa/Quantas Lágrimas
segunda-feira, 29 de março de 2010
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