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terça-feira, 27 de abril de 2010

Enterrando meus mortos II

Estava angustiado e andando de um lado para o outro. Enquanto minha avó disfarçava o choro, meu avô estava sentado, olhando para o horizonte e com a cabeça distante. Até que as outras duas cachorras latiram, avisando que minha tia havia chegado. Era hora de buscar nossa cachorra para enterrá-la.

Eu e minha tia fomos, relativamente bem. Conversamos um pouco e logo chegamos até a clínica. Subimos a longa escadaria e lá em cima um funcionário magro, alto e de expressão fechada nos recebeu. Assim que soube o que procurávamos se mostrou sereno e compreensivo com a nossa perda. A feição já era outra.

De lá de dentro ele surgiu com a Husky nos braços. Foi difícil ver, por mais que soubesse. Meus olhos logo se encheram de lágrima e me adiantei aos dois e fui descendo as escadas. Pensei em colocá-la no porta-malas, mas minha tia logo se adiantou e disse, "ela vai lá dentro, no banco". Entendi como seria respeitoso e carinhoso esse ato. Abri o carro, colocamos alguns papelões no banco de trás e a forramos com o lençol, o mesmo que usamos para carregá-la até o carro para trazê-la até o veterinário.

Lúcia (minha tia) foi até a recepção para pagar as despesas do tratamento enquanto fiquei no carro com a cachorra. Não deu pra segurar por muito tempo. Chorei, chorei e novamente a acariciei como fiz durante sua agonia. Mas dessa vez ela não respirava, não olhava para o nada, ou mesmo para mim. A língua, já roxa, estava com a ponta para fora da boca no lado esquerdo. Não podia duvidar que ela estiva morta.

Peguei o telefone e liguei para a minha avó, pedi que ela avisasse ao meu avô que a "cova" estava pequena e que ele aumentasse o espaço. Um dos motivos da minha preocupação era que o corpo da cachorra começava a ficar rígido. As patas dianteiras não podiam mais ser dobradas e as traseiras possuíam um mínimo de flexibilidade. Ao fazer o pedido minha voz engasgou, mas respirei e terminei a conversa.

Tentei me recompor, mas meus olhos já estavam tão vermelhos que era impossível negar o choro. Chorei mais um pouco e enxuguei meu rosto. Cobri o quanto pude o corpo branco e peludo. Mesmo sem vida ela ainda era uma cachorra linda, talvez a mais bonita que eu já tenha visto. Lúcia voltou e parou por alguns segundos a olhando. Entrou, ligou o carro e fomos embora. Calados, ouvia apenas o choro quase silencioso da minha tia. Enquanto uma mão segurava o volante, outra se ocupava em secar lágrimas que escorriam pelo rosto. Quieto, apenas mantive o silêncio.

Perto de casa, minha tia achava estar errando o caminho. Um pouco desnorteada com o que estava acontecendo, mas a avisei de que estávamos no caminho certo. Entramos pela área verde, onde a "cova" estava aberta, mas meu avô tentava aumentá-la. A dificuldade se dava pelo enorme coqueiro de dendê, a cerca de dois a três metros, com suas raízes dificultando a escavação. Peguei a enchada e fui ajudá-lo, enquanto isso minha vó vinha para olhar pela última vez sua cachorra.

Enquanto ela e a Lúcia choravam eu tentava (apenas tentava) não pensar muito no que estava fazendo. Peguei a pá e retirei a terra de dentro do buraco. Muita terra pra um buraco relativamente pequeno. Logo minha vó me chama e linda e inocentemente me pergunta, "Meu filho, ela não está respirando? Acho que eu a vi respirando!". Sorri e com a mão em seu ombro expliquei que infelizmente a cachorra não respirava mais.

Decepcionada ela se afastou do carro, ainda enxugando o rosto e repetindo, "coitada, ela sofreu tanto...". E de fato, sofreu muito. Seus uivos de dor e desespero ainda ecoavam na minha cabeça, mas de alguma forma a morte dela me soava mais como um alívio do que como uma perda. Talvez por isso eu tenha chorado pouco. Minha tia colocou o carro próximo ao local onde enterraríamos a cachorra. Eu e meu avô tiramos o corpo do banco do carro com a ajuda do lençol e a colocamos na cova. Quando a terra começou a cair sobre seu corpo minha vó logo nos deu as costas e apressou o passo para dentro de casa.

Respirei fundo e não olhei para dentro do buraco quando puxei a terra que cobriria seu rosto. Terminei, peguei o carro e coloquei na garagem. Minha vó abriu o portão para mim, enquanto tentava não mostrar o rosto lavado com tanto choro. As outras cachorras me cheiravam e pareciam entender tudo o que se passava. A minha cachorra (Labrador) ficou quieta, apenas me acompanhando. Lavei minhas mãos e me abaixei para "falar" com ela. Seus olhos estavam me olhando com uma certa dose de tristeza e estranhamente ela não fez o alarde de sempre. Não pulou em cima de mim, não me lambeu, não mordeu minha mão, apenas sentou-se e balançou o rabo enquanto eu a acariciava.

Pensei no dia que ela morrer, mas logo mudei o pensamento para não sofrer por antecipação. Tudo no seu tempo, sem antecipar ou precipitar nada. Acho que a lição dos últimos meses tem sido essa. E os mortos dentro de mim? Estavam momentaneamente enterrados.

Tim Maia - Ela partiu

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